Guedert Advogados

Um instituto anacrônico chamado Terreno de Marinha

Por Sérgio Guedert

 

Nesta época do ano os foreiros e demais ocupantes dos ditos terrenos de marinha ficam todos aguardando apreensivos para saber qual será a novidade que lhes será apresentada para justificar o aumento das taxas que são cobradas pela União, pelo direito de uso que fazem dos terrenos que lhes foram concedidos pela mesma.

 

O órgão responsável e que foi criado para cuidar desses terrenos, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), praticamente funciona, na verdade, com a preocupação maior apenas de aumentar a arrecadação proveniente das taxas cobradas dos particulares pelo uso desses imóveis, utilizando-se para isto de critérios esdrúxulos para demarcação dos mesmos, com o flagrante e evidente objetivo de estender ao máximo estas referidas áreas de terras.   

 

Todos os que se propõem a um estudo sério a respeito de se verificar a origem dos assim chamados terrenos de marinha chegam a seguinte conclusão: trata-se de um instituto medieval e anacrônico que só existe no Brasil, constituído em nosso país no ano de 1831, com base no instituto feudal da enfiteuse – esta criada para assegurar aos proprietários de terras a cobrança de uma taxa perpétua daqueles que realmente trabalhavam e produziam nessas terras.

 

Conceituou-se terreno de marinha como sendo a faixa de terras em toda a costa brasileira contendo 33 metros contados do mar para a terra, a partir de onde esta é atingida pela preamar (média das marés altas), tendo como referência as marés do ano de 1831.

 

Este conceito, definido inicialmente em 1831 e após no decreto imperial nº 4105, de 22 de fevereiro de 1868, foi reeditado pelo Decreto-Lei 9.760/46, que em seu artigo 2º, atualizou o texto conceitual da seguinte forma: “Art. 2º – São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar médio de 1831: a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se façam sentir a influência das marés. Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pela menos do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano”.

 

Mas qual seria então a razão de se fixar a metragem exata de 33 metros da preamar? Simples: é que na época em que foi instituído o terreno de marinha, esta era a metragem para deslocamento de um determinado número de militares que compunham a formação de um pelotão que tinha a função de guardar o litoral brasileiro, e também, para colocação ali de canhões que desta distância poderiam atingir um eventual navio invasor.    

 

Verifica-se, pois, que os próprios motivos que levaram a criação das terras de marinha no Brasil revelam sobremaneira o anacronismo deste instituto, que perdura injustificadamente até os dias de hoje apenas para satisfazer a sanha arrecadatória governamental, impondo um pesado ônus aos seus ocupantes que pagam verdadeiras fortunas para utilizarem tais imóveis, sem contar que são eles obrigados ainda ao pagamento do IPTU sobre esses mesmos terrenos de marinha cuja propriedade é atribuída a União Federal.

 

Some-se ainda outros fatores que impingem a eles o sofrimento anual de se verem achacados pela União, dado os critérios utilizados arbitrariamente pela SPU para calcular não só aumento das taxas, como também as linhas de demarcação destes imóveis, tudo sem contar ainda que são eles considerados apenas simples ocupantes, sem nenhuma garantia, pois a concessão do direito de uso é feita de forma precária e a qualquer tempo a União pode cancelar discricionariamente esta concessão, sem que assista ao ocupante qualquer direito de contestação.

 

A propósito dos critérios adotados pela SPU para demarcação dos terrenos de marinha, o Professor Dr. Obede Pereira de Lima, engenheiro cartógrafo, contesta veementemente os procedimentos demarcatórios adotados pelo referido órgão e em sua monografia denominadaTERRENOS DE MARINHA E SEUS ACRESCIDOS: localização e demarcação destes bens da União pelo método científico versus critérios praticados pela SPU”,elaborada para exposição na Câmara dos Deputados, monografia esta que foi extraída da sua própria tese de doutorado intitulada “Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 (LPM/1831), com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos” apresentadaao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da UFSC, discorrendo em ambos os trabalhos com propriedade ímpar e de forma detalhada sobre a história dos terrenos de marinha, explicando cientificamente como deveria ser o cálculo correto para determinar de maneira exata dentro dessa classificação.

 

O professor Obede, nas obras acima citadas, afirma ter conseguido calcular de maneira exata a linha preamar média de 1831 em determinados trechos do litoral brasileiro, dizendo que sua metodologia pode ser usada em qualquer outra área, e afirma outro dado curioso: devido ao aumento do nível do mar desde 1831, atualmente os terrenos de marinha, se calculados de acordo com o que manda a lei, estariam em sua maioria (95% deles) ou embaixo d’água ou em áreas de faixas de areia de praias que, de acordo com a Constituição, são de uso comum, público e coletivo do povo brasileiro, não podendo ser objeto de cobrança de taxas por parte da União.

 

Temos então que os cálculos da SPU para cobrança das taxas é feito de forma ilegal com base em avaliações e reavaliações anuais nos valores do metro quadrado das diversas regiões, como é feito pelos Municípios para cobrança do valor do IPTU, importando assim num aumento despropositado dos valores dessas taxas.    

 

Ora, segundo está claramente previsto na legislação aplicável, tanto a taxa de ocupação como o foro, cobrados dos ocupantes, uma vez fixados, são certos e invariáveis e legalmente somente podem ser corrigidos monetariamente, anualmente. Era exatamente isto que entendia a jurisprudência de praticamente todos os Tribunais do País, inclusive do próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) até bem pouco tempo atrás.

 

Este entendimento, entretanto, foi completamente alterado recentemente, ou seja, numa guinada de 180 graus, o STJ, que através de inúmeros acórdãos anteriores entendia que as referidas taxas e foro uma vez fixados, somente poderiam sofrer atualização monetária anual, modificou totalmente este entendimento para permitir que a atualização fosse feita mediante reavaliação do imóvel.

 

Mas apesar disso não nos desanimamos. Até porque tramitam no Congresso Nacional vários projetos de Lei e de Emendas a Constituição que extinguem por completo o conceito e consequentemente este anacrônico instituto denominado terreno de marinha. Os autores destas propostas legislativas argumentam que o atual regime patrimonial destes terrenos foi definido há mais de 150 anos quando imperava uma situação que não mais existe e nem se justifica diante da realidade atual, restando assim claramente aflorado um meio de arrecadação de tributos moralmente injustificado.

 

Vamos acompanhar então a tramitação destes projetos e cobrar dos nossos deputados e senadores um posicionamento definitivo a respeito disso, para sepultar de vez este anacronismo chamado “terreno de marinha”, fazendo com que este mal se esboroe pela sua própria inutilidade. 

 

Sérgio Guedert é advogado, sócio-fundador do Guedert Advogados Associados, com mais de 30 anos de experiência e atuação voltada para as áreas de Direito Empresarial, Administrativo e Tributário.

Artigo originalmente publicado em abril/2015.